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Quarta-feira, 22 de Outubro de 2025
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LGB sem T: a nova face da transfobia em movimento

Rede internacional de coletivos LGB International foi lançada em 19 de setembro alegando silenciamento por parte do ativismo trans

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LGB sem T: a nova face da transfobia em movimento
Philippe Gomes/Secom GEA
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Nos últimos dias tem viralizado a notícia de que homossexuais teriam anunciado a ruptura com o ativismo trans, criando um movimento LGB sem o T. A matéria divulga a criação, no dia 19 de setembro, de uma rede internacional de coletivos que se dizem silenciados pelo ativismo trans e buscam sua independência: a LGB International. Por que isso aconteceu agora? E o que está por trás da criação dessa rede?

A criação de organizações e redes específicas por identidades sexuais ou de gênero não é nenhuma novidade. As mulheres lésbicas, por exemplo, se organizam tanto em espaços mistos quanto exclusivos desde pelo menos os anos 1980, com a fundação do Grupo de Ação Lésbico Feminista (Galf). Atualmente, além de integrarem organizações mistas como a Aliança Nacional LGBTI+, se organizam em redes próprias, como a Liga Brasileira de Lésbicas e a Articulação Brasileira de Lésbicas. Do mesmo modo, as pessoas trans também se articulam tanto em coletivos gerais como em suas organizações específicas, como a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), a Rede Trans Brasil e o Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros (Fonatrans). O mesmo se repete com cada uma das outras identidades que compõem a chamada “sopa de letrinhas” LGBTQIA+ ou qualquer outra variação que se adote.

Portanto, a novidade da LGB International não está no simples ato de organizar um segmento, mas sim no conteúdo político e ideológico que sustenta a iniciativa. Essa rede não busca fortalecer as lutas específicas de lésbicas, gays ou bissexuais, seu objetivo central é criar um espaço de oposição ao reconhecimento das pessoas trans e à defesa de seus direitos.

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Uma análise atenta do vídeo de lançamento deixa isso evidente. Trata-se de um compilado de falas de pessoas de diferentes países, cada qual enunciando sua razão para a “independência” em relação ao T. No início, o tom parece inofensivo, com frases como “tudo bem meninos gostarem de bonecas e meninas odiarem vestidos” ou “estamos cansados de pessoas que não são lésbicas, gays ou bissexuais falando em nosso nome”. No entanto, à medida que o vídeo avança, o discurso se radicaliza: “porque espaços lésbicos agora acolhem homens”, “porque os direitos homossexuais não estão contra os direitos das mulheres” e “porque queremos quebrar normas de gênero e não nossos corpos”. O que aparece de forma velada no começo se revela sem disfarces: uma plataforma organizada contra a legitimidade das identidades trans.

Crédito: Philippe Gomes/Secom GEA

As raízes intelectuais da transfobia organizada

Esse discurso não nasceu agora. Ele tem origem em uma corrente específica do feminismo, conhecida como feminismo radical trans-excludente (ou Terf, na sigla em inglês). Três autoras, que costumamos chamar de a “santíssima trindade da transfobia”, deram base teórica a esse movimento: Janice Raymond, Mary Daly e Sheila Jeffreys. Raymond, em particular, publicou em 1979 o livro The Transsexual Empire, em que defendia abertamente que a existência de pessoas trans seria uma forma de estupro aos corpos de mulheres. Daly e Jeffreys seguiram linhas semelhantes, associando identidades trans à manutenção do patriarcado e negando-lhes legitimidade política e social.

Embora esse tipo de discurso tenha surgido nos Estados Unidos dos anos 1970, ele encontrou novos ares a partir da década de 2010, especialmente em meio ao crescimento das redes sociais e da radicalização política pelo mundo. Aos poucos, o feminismo radical transfóbico deixou de ser uma corrente marginalizada para se tornar um componente importante de campanhas lésbicas e feministas na Europa, na América Latina e também no Brasil. No plano internacional, essas feministas organizaram-se para lançar, em 2019, a “Declaração dos Direitos das Mulheres Baseados no Sexo”, um documento que dialoga diretamente com outros instrumentos internacionais de direitos das mulheres para, em síntese, pedir que organizações e governos parem de usar o termo “gênero” e utilizem apenas “sexo”. Segundo o documento, “em anos recentes, alguns governos vêm substituindo ‘sexo biológico’ por ‘identidade de gênero’ nas leis e políticas, incluindo homens que dizem possuir uma ‘identidade de gênero’ feminina no termo ‘mulher’. Isso possibilita que esses homens obtenham acesso a espaços e serviços para mulheres e garotas”.

A nova face da transfobia

Não por acaso, o discurso do feminismo radical trans-excludente é muito similar ao da LGB International. Esta é apenas uma nova face para a transfobia. Se o feminismo radical transfóbico foi o primeiro discurso sistemático contra pessoas trans – com penetração mais forte em alguns movimentos de mulheres cis e em setores do movimento lésbico –, a novidade da LGB International é ampliar esse alcance. Ao adotar uma linguagem aparentemente mais “moderada” e apropriar-se de bandeiras históricas do movimento LGBTQIA+, esse grupo oferece uma versão mais palatável da exclusão, camuflada sob o pretexto da defesa de direitos e que atinge agora um novo público: homens gays, bissexuais e outras pessoas potencialmente aliadas.

Essa estratégia é perigosa porque desloca o debate público. Em vez de discutir como o gênero é um sistema social de opressão que atinge a todos, inclusive gays, lésbicas e bissexuais, a LGB International insiste em separar “orientação sexual” de “identidade de gênero” como se fossem campos opostos e mutuamente excludentes. Desse modo, reforça velhos padrões de gênero que definem formas “aceitáveis” de ser gay ou lésbica, justamente aquelas que mais se aproximam dos padrões tradicionais heteronormativos.

A disputa por legitimidade política

Outro aspecto preocupante é a tentativa da LGB International de ocupar espaços institucionais de representação global. Sua criação é uma ruptura e uma resposta direta a redes como a International Lesbian, Gay, Bisexual, Trans and Intersex Association (Ilga), que desde 1978 reúne coletivos do mundo todo em defesa de uma agenda ampla de direitos humanos. Ao propor um “corte” no movimento, a LGB International pretende se apresentar como uma alternativa legítima perante organismos multilaterais como a ONU, tentando influenciar resoluções e relatórios internacionais.

Esse movimento não é apenas simbólico, mas estratégico. Em tempos de ataques a direitos LGBTQIA+ por governos autoritários, a fragmentação é uma arma poderosa nas mãos desses regimes e parlamentares conservadores. Ela permite que eles digam: “Vejam, o movimento é uma bagunça, não há consenso. Por que deveríamos legislar sobre os direitos de um grupo que nem mesmo concorda sobre si mesmo?” Dessa forma, a LGB International, voluntariamente ou não, fornece a munição retórica para paralisar políticas públicas e bloquear avanços legais que beneficiariam a comunidade como um todo, incluindo seus próprios membros.

A retórica da LGB International, embora se apresente como uma defesa dos direitos LGB, ressoa profundamente com a agenda de grupos conservadores e fundamentalistas que são historicamente inimigos de qualquer direito LGBTQIA+. Não é surpreendente, portanto, que esses supostos “defensores” dos gays e lésbicas encontrem apoio, palanque e, suspeita-se, financiamento de setores que se opõem ao casamento igualitário, à adoção por casais de mesmo gênero e à criminalização da homofobia. Organizações do feminismo radical trans-excludente já vêm se aliando à extrema direita no Brasil. O grupo “A Mátria”, por exemplo, tem participado de audiências públicas contra os direitos das pessoas trans convocadas por parlamentares como Capitão Alden e Coronel Fernanda. O mesmo provavelmente ocorrerá com esses coletivos LGB. Essa aliança tática entre supostos “grupos identitários” e a extrema direita revela o verdadeiro objetivo: não é proteger LGB do T, mas desmantelar toda a estrutura de direitos de gênero e sexualidade, começando pelos mais vulneráveis, as pessoas trans.

Conclusão

A transfobia nunca se apresentou de forma única. Ela já se manifestou como patologização médica, como perseguição religiosa, como exclusão feminista e, agora, como uma cisão interna artificial dentro do próprio movimento. A cada fase, assume novas caras, mas mantém a mesma essência: negar humanidade, direitos e cidadania às pessoas trans.

A criação da LGB International não pode ser lida apenas como uma escolha organizativa legítima, mas sim como parte de uma ofensiva coordenada. É uma tentativa de reconfigurar o campo político da diversidade sexual e de gênero, excluindo justamente aquelas identidades que mais têm desafiado as normas de poder.

Resistir a essa nova face da transfobia exige lembrar que nossos direitos nunca foram conquistados isoladamente. Foi na aliança entre diferentes identidades e experiências que construímos o movimento LGBTQIA+ e que conquistamos avanços significativos ao longo das últimas décadas. Nossa força sempre residiu na coalizão e no entendimento de que a opressão baseada em gênero e sexualidade é interligada. A fragmentação só interessa a quem quer nos derrotar. Por isso, diante dessa ofensiva, é mais urgente do que nunca reafirmar a solidariedade entre lésbicas, gays, bissexuais, pessoas trans, intersexuais, travestis e todas as demais identidades dissidentes. Somente juntos seremos fortes o suficiente para enfrentar as várias faces da transfobia.

 

Thiago Coacci é doutor em Ciência Política e ativista da Frente Autônoma LGBTI+.

Mallu Almeida é ativista travesti e coordenadora do Transvest.

FONTE/CRÉDITOS: https://diplomatique.org.br/
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